segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Herança

- “Toma, cuida bem dela”

Meu avô nunca foi um homem de muitas palavras, pelo menos desde que eu me conheço por gente. Também, ele viu o desastre acontecer. Viu de perto. E pensar que no tempo dele esse tipo de coisa era tema de video-game, filme B…

De qualquer forma, lembro bem quando ele me deu a espingarda, uma Winchester 44 , repetição por alavanca, linda. “Toma, cuida bem dela” e eu sabia exatamente o que ele queria dizer, sabia que, se duvidar, ele gostava mais da espingarda do que de mim, que não era uma simples herança. “Toma, cuida bem dela” era a forma dele dizer “eu não quero que o meu maior tesouro fique aqui, jogado ao leo, pisoteado pela turba de zumbis que daqui a pouco vai conseguir quebrar o portão”. “Toma, cuida bem dela” foi tudo que ele me disse, ao me entregar a espingarda e me expulsar com um aceno.

Tinha a encontrado em uma de suas primeiras pilhagens atrás de comida, numa mansão abandonada. O antigo dono, provavelmente morto, obviamente um colecionador, tinha cuidado muito bem da arma: limpado, restaurado e customizado (o que explica a inscrição “PEACEMAKER” gravada na solera em letras caligrafadas). Enfim, o que importa é que desde este dia ela foi a maior companheira do meu avô, cresceu com ele, viu meu pai nascer, viu meu pai morrer, inclusive que foi a maior matadora de zumbis no lendário cerco ao shopping, em 2019.

Agora ela está comigo, nessa antiga fábrica de enlatados. O grupo está acampado a 3km daqui, há 40, 45 dias, e a comida está escassando. Quando eu e os outros batedores entramos aqui, procurando alimentos, descobrimos que a fábrica estava infestada pelos malditos comedores de cérebro e, em um descuido, acabamos ilhados no empoeirado refeitório dos funcionários.

Tudo bem que já passei por situações mais difíceis, sobrevivi a momentos mais desesperadores, mas, ainda assim, não consigo parar de pensar:

- “Toma, cuida bem dela”.